RECORDE CROSS COUNTRY DE ASA DELTA NA MOEDA

 

Serra da Moeda, 7 de setembro de 1993

texto e fotos por
Lucas Machado

 Terça feira, último dia do patriótico e prolongado feriado. O dia amanheceu leitoso, com uma camada de cirrus embaçando todo o céu. Os dias anteriores oscilaram de muito bons a razoáveis. Em comum apenas as turbulências e o Moedão forte e de frente que se fizeram presentes todos os dias. Mas como o teto esteve sempre acima dos 3.000m asl e eu não tinha voado no dia anterior, estava descansado e ansioso por decolar, em qualquer condição.

Lucas pronto para decolar em 7/9/93

 Éramos um bando e tanto. Todos voavam asas-delta. Eu, que sempre voava – ás vezes até debaixo de chuva –, não ligava nem para o Moedinha. Se chegasse na rampa e o vento era de leste, carregava a asa e o cinto até a antiga rampa do Moedinha, montava e decolava. Se o vento virasse, decolava Moedão de lá mesmo. Foi o que aconteceu neste dia. Ildeu de Castro, o Dedeu, um intrépido piloto, praticamente autodidata, era companhia freqüente nos vôo de cross-country. Seu lema era: 500 metros acima da rampa, planeio com vento de cauda. Foi ele quem me mostrou que o verdadeiro espírito do vôo livre estava no vôo de distância. Nos meus primeiros cross, ele praticamente me levava pela mão. E eu ia com imensa alegria, ansioso por não saber onde pousaríamos, mas certo de que comemoraríamos no primeiro bar que encontrássemos, com muitas cervejas, gargalhadas e nenhuma pressa de voltar.

Lucas  e Cid no mundial de cross country em Valadares, 1990.

Mas não estávamos sozinhos. Na esquadrilha – ou seria quadrilha? – também estava presente Cid Maestrini, o mais técnico dos pilotos que conheci. Sua habilidade e conhecimentos vinham da larga experiência que tinha com os barcos a vela. Poucos meses antes, ele havia quebrado o recorde de distância da Serra da Moeda, num vôo de 98 km até São João Del Rei. Neste dia, eu e Dedeu voávamos bem à frente na mesma rota, ainda cedo e com o dia ainda falhado. Dedeu, depois de muito batalhar numa merrequinha, acabou pousando entre São Brás do Suaçui e Lagoa Dourada. Eu, que estava na base da nuvem acima de onde o Dedeu pousara, mandei uma série enlouquecida de wingovers e pousei ao lado dele, abandonando o vôo, mas feliz por ter tido a chance de compartilhar mais um cross com meu grande amigo. Quando já havíamos desmontado as asas foi que avistamos o Cid na mesma nuvem em que eu estava, numa tirada muito sustentada até a próxima base. Como o resgate das asas é uma operação estratégica, passamos um rádio para ele, informando que iríamos buscá-lo onde fosse. E assim um novo recorde foi estabelecido e efusivamente celebrado por todos.

Ricardo no radio e Dedeu na cerveja, no dia do record do Cid.

O recorde anterior já durava uns 2 anos e pertencia ao Ricardo Carioca, veterano que voou até Carandaí, marcando 85 km. Ricardo e Dedeu construíram belas casas vizinhas em um condomínio próximo do pouso no Japonês, onde deixavam as mulheres e filhos e iam voar. Como eu era uma espécie de convidado cativo, minha mulher me deixava na rampa e seguia com nossa filha para a casa dos amigos. Nós voávamos, pousávamos próximo das casas e passávamos o resto do dia entretidos com churrascos, cervejas e peladas de vôlei, futebol e futevôlei. Bem, isto quando não tirávamos para o cross.

 Completando a trupe estavam Márcio Calais, Henrique Maleta, Marcelo Rubioli, Victor Motta, Paulo Edmundo, Silvana Lage, Márcio Tadeu, Paulo Reis, Ailton, Lincoln, Adauto, entre outros. E naquele 7 de setembro todos pareciam um pouco saturados de vôo, afinal já era o quarto dia de pauleira. Mas eu não tinha voado no dia anterior. Além da condição não ter me parecido das mais tentadoras, estava cansado e uma enorme ressaca dificultava até meu raciocínio. Preferi fazer o resgate do Dedeu que, para minha sorte, pousou logo no Viaduto das Almas, ao lado de um restaurante de beira de estrada que tinha a cerveja mais gelada e o melhor pão com lingüiça que já comi. Era tudo o que meu organismo precisava para se recompor. Na volta para a rampa já sonhava com um vôo épico no dia seguinte.

 Mas o dia seguinte não parecia nada clássico. Devido ao meu dia de descanso, fui o primeiro a montar e decolar. Como havia combinado, aguardei pelo Dedeu na base da nuvem acima da rampa. A condição era mesmo estranha. Apesar do grande cirrus, as térmicas eram fortes, mas turbulentas e falhadas. O Dedeu ainda não havia decolado e eu já estava voando há quase uma hora. Depois de colocar muita pilha para que ele decolasse logo, finalmente ele decolou e iniciou sua sessão de enroscadas no seu estilo peculiar, com bordos amplos e nivelados. Logo se juntou a mim e antes de decidirmos a hora da tirada veio a pergunta fatídica: quem vai nos resgatar? Esta questão pode não ser muito relevante para quem voa de parapente, mas para as asas – acreditem – é fundamental. Foi quando o Ricardo entrou na freqüência e se ofereceu para nos resgatar, desde que fosse no carro do Dedeu. Com o devido consentimento, cassamos o GV das asas, alterando suas geometrias e largamos na cauda com a proa para o sul, sem mapas ou GPS. Pobre Ricardo. Se ele soubesse aonde iria nos resgatar...

Wing Over sobre a rampa

 O começo do vôo foi estranhamente lento. Embora o teto estivesse a mais de mil da rampa, não conseguíamos alcançar a base das nuvens. Mas isto tampouco nos inibia e seguíamos tirando para o sul, a leste da rodovia, sobre o platô. Dedeu insistia em alcançar a base durante as enroscadas enquanto eu o apressava, alegando não ser necessário ganhar tanta altura, já que em nenhum momento ficávamos abaixo dos 2.500m asl. O forte vento norte nos empurrava exatamente sobre a estrada, com um rendimento que melhorava cada vez mais. A partir de Congonhas o vôo seguiu numa incrível rotina: enroscávamos no início de uma cidade, a deriva da termal nos fazia passar a cidade enroscando e quando chegávamos à base da nuvem já tínhamos ultrapassado aquela cidade e planávamos em direção à próxima. Quando chegávamos na cidade seguinte a rotina repetia-se. Deste modo, já tínhamos deixado para trás as cidades de Congonhas, Lafaiete, Carandaí, Cristiano Otoni e Ressaquinha.

Congonhas da base

Serra de Ouro Branco

O teto subia cada vez mais. Eu e Dedeu já estávamos com a coreografia de nossas enroscadas ensaiada à exaustão. Mesmo com ele preferindo enroscar para o lado oposto ao meu, subíamos sincronicamente juntos e quando nos aproximávamos um do outro em certa parte da espiral nos saudávamos com extrema alegria. Enroscando sobre Ressaquinha, comentei sobre a possibilidade de voarmos até Barbacena, um antigo sonho cultivado pelo Dedeu, que tinha parentes por lá. Sabíamos que a distancia até Barbacena era de 120 km, mas ainda não tínhamos comentado nada sobre recordes. Chequei os instrumentos e comecei a ficar preocupado. Subíamos a constantes 6m/s, já estávamos a quase 4.000m de altitude e a base ainda parecia estar a uns 200m mais acima. Meu medo era o de sermos acometidos por hipóxia, já que aquela altitude era inédita para mim. Mas a vista era mesmo alucinante.

Cruzando Lafaiete

Quebrando a barreira dos 100kms sobre Ressaquinha

Passei um rádio para o Dedeu, dizendo que já estávamos alto o bastante e que deveríamos tirar logo para fazer o vôo render mais. ‘Que nada’, ele respondeu ainda enroscando e já quase na base, ‘isso aqui tá bom demais’. Pronto. Dedeu já estava embriagado pelos 4.200m de altitude. Alertei-o sobre o “mal dos aviadores” e avisei que já estava tirando rumo a Barbacena, bem na vertical da BR-040. Dedeu deu mais uns bordos e tirou mais alto e mais atrás, porém seu rumo era sudeste. Eu o perdi antes de sua tirada e ele entrou na freqüência dizendo que eu estaria no rumo errado. Por um momento fiquei confuso, pensando que estaria voltando. Chequei a estrada, a bússola e o sol e disse meio vacilante: - Acho que estou certo. Um tempo depois, uns metros mais baixo e melhor oxigenado o Dedeu, que eu ainda não via, informou que ele é que estava errado, pois estava seguindo uma estrada de ferro pensando ser a  BR-040. Hipóxia, pensei. Acompanhei com a vista a tal estrada de ferro e o avistei voltando de um desvio na rota de mais de 5 km, mas ainda bem alto.

 Estávamos chegando em Barbacena e a visão turva daquela cidade, enorme comparada com suas vizinhas, nos causava grande euforia. Ricardo, no carro de resgate, falou em recorde pela primeira vez, pois já havíamos quebrado a barreira dos 100 km. Na rampa a galera ainda recebia nossas transmissões de rádio, de tão alto que estávamos. Ironicamente, Cid Maestrini, então detentor do recorde, tinha chegado para voar conosco, mas achou a condição ruim e preferiu não decolar. Entrou no carro, ligou o rádio na nossa freqüência e ficou lendo um livro. Mais tarde ele me contou que seu arrependimento chegou no auge quando me ouviu dizer pelo rádio: - Barbacena, olha o passarinho! Acabara de registrar numa foto o meu sobrevôo naquela cidade. Marcelo Rubioli, outro adepto do cross-country, tinha um churrasco e não poderia voar naquele dia, mas também ligou seu rádio na nossa freqüência e passou toda a festa se martirizando com nossos relatos.

Barbacena, olha o passarinho !

Apesar de toda a felicidade, minha asa apresentava problemas. O cabo do GV estava puindo junto à roldana do king-post e era cada vez mais difícil acioná-lo. Em certo momento ele travou de vez, impedindo que eu cassasse a asa para render mais nas tiradas. Como eu já sabia a maneira de soltar o cabo da roldana que fica junto à vela, abri o cinto para liberar as pernas, pisei na barra do trapézio e fiquei de pé no speed-bar, até alcançar a roldana. Por um bom tempo eu pilotei a asa com os pés, enquanto soltava o cabo. Através do vox, avisei ao Dedeu o que estava fazendo e ele custou a acreditar no que estava vendo: eu de pé no trapézio a 4000m de altura. Na chegada a Barbacena a termal de recepção estava esperando por nós e nos colocou de volta ao topo do céu. Eram 4 horas e ainda subia forte e constante. De novo, cruzamos a cidade enroscando, mas desta vez às gargalhadas, tirando fotos e fazendo piadas. Na hora da tirada, o cabo do GV se prendeu de novo. Repeti a operação de escalada no trapézio, mas desta vez ele estava muito desfiado e seria impossível soltá-lo durante o vôo. Voltei para a posição normal e avisei ao Dedeu que estava sem GV, mas que tentaria acompanhá-lo mesmo assim. Foi quando ele me disse que então não cassaria a asa dele para que pudéssemos voar juntos. Amigo é para essas coisas, pensei.

No cockpit

 Logo avistamos uma longa cordilheira que sumia rumo ao oeste. Era impossível não se impressionar pela sua grandiosidade. Estávamos voando numa rota em que cruzaríamos com ela perpendicularmente, acompanhando a rodovia. Perguntei ao Dedeu que serra seria aquela e ele disse que não sabia. Na freqüência o Ricardo informou que era a Serra da Mantiqueira. Claro, pensei. Estávamos cruzando a Serra da Mantiqueira a 4000m de altitude e ela não parecia tão alta lá de cima, mas mesmo assim me emocionei às lagrimas que me gelavam a face. Exatamente na vertical do ponto que seria o topo da serra, percebi que nossa velocidade era maior do que as dos carros que a subiam. Era incrível como o vento de cauda era forte e exatamente na direção que queríamos.  

Planamos por uma hora e só no planeio final cobrimos 50 km. Depois da Mantiqueira, logo chegamos à Cidade de Santos Dumont, mas não havia mais nenhuma termal nos esperando. A condição do outro lado da serra era totalmente diferente. Tudo sombreado. Mas o Dedeu, que seguia mais à frente e um pouco mais baixo, seguia seus princípios de se deixar levar pelo vento de cauda. Uma enorme chaminé se destacava na paisagem e a fumaça que de lá saía corria na horizontal, nos indicando a direção e a velocidade do vento, que não era pouca. Seguíamos no nosso planeio e quanto mais voávamos, mais as montanhas cresciam. Chegamos a Ewbank da Câmara e já estávamos baixo. Comecei a procurar por pouso, mas o Dedeu parecia determinado em sua rota sobre a estrada que agora passava por um vale formado por uma seqüência de morrotes. No último morrote, na divisa de Juiz de Fora, ele passou rasante pelo seu topo, deixou a asa render mais um pouco, deu um bordo de 180 graus e pousou chapadinho no aclive. Perfeito. Fiquei lá de cima olhando para sua asa e admirando a habilidade e a determinação daquele piloto. Ele tinha aproveitado até o ultimo centímetro de seu planeio.  

 Planeio final sobre Santos Dumont

Restavam-me uns 100m para a aproximação. Quando o Dedeu reportou que estava tudo bem e que já tinha guardado o recorde no bolso, eu disse que iria esticar o vôo até o próximo morrote e ficar com ele. Dedeu não acreditou que era brincadeira, quando me viu passando por cima dele em direção ao outro morrote. ‘Pô, não faz isso comigo não”, disse quase implorando. Logicamente que dei um bordo e pousei com meu amigo, menos de 10m abaixo de onde ele pousara e ainda disse que o recorde era meu por míseros 10 metros, o que sabíamos não ser procedente. Nos abraçamos e comemoramos efusivamente os 155 km voados naquele dia.

Festa no pouso

 Pousamos às 5 horas, portanto fizemos o percurso em 4 horas, mas eu estava no ar há 5 horas, contando com o tempo em que fique esperando o Dedeu, sobrevoando a rampa. Nossa média tinha sido de quase 40k/h, excepcional para a época. Logo o Ricardo parou o carro na porteira da Fazenda Dona Mariinha e juntou-se a nós na celebração. O sol começou a se pôr e nos apressamos para desmontar as asas e voltarmos logo para casa, pois o percurso de volta pela estrada seria de 211 km. Paramos rapidamente em um posto em Santos Dumont para abastecermos o carro e nossos estômagos. Mal sabíamos que enfrentaríamos, na estrada movimentada no fim de um feriado prolongado, perigos maiores do que quando estávamos voando de asa-delta. Chegamos de volta na casa de campo do Dedeu às 10 da noite e mal comemoramos. Mas a comemoração retomou e dura até hoje. Este ano festejamos o oitavo aniversário do recorde. Achávamos que o maior candidato à quebra-lo era o Calais e que ele o faria inevitavelmente mais cedo ou mais tarde. Este ano, a celebração do nosso recorde é dedicada a ele.

 Fomos abençoados por uma condição mágica. Teto de 4.200m asl, térmicas de 5 a 7 m/s, enormes e constantes, vento norte de 40 a 50 km/h e cumulus que pareciam figuras de livro de meteorologia. Além disto, contávamos um com o outro e com um resgate eficiente. Mas na minha opinião, o mais importante foi a persistência com que nós caçávamos um dia perfeito como aquele. Naquela noite, meu filho, Rafael, foi concebido e nasceu em 18/6/94. O melhor troféu que poderia ter ganho.

 

Equipamentos utilizados

Lucas Machado:

Ildeu de Castro:

Asa:  Airwave K4 Asa: Solar Rumour
Cinto: Airwave Race Cinto:  Nenê Rotor
Reserva: Airwave RS Reserva: Aero Sport
Vario: Flytec  Vário: Flytec
Bússola: Silva Bússola:  Silva
Rádio:  Yaesu Rádio:  Yaesu
 

 

Lucas Machado - [email protected]

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